Quantas vezes nos pegamos recordando com clareza ter colocado as chaves em um lugar específico, apenas para descobrir que elas estavam o tempo todo em nosso bolso? Ou ouvimos um amigo contar uma história que envolveu nossa participação, e a versão dele difere radicalmente daquela que temos em nossa memória?
Essas experiências, por mais desconcertantes que sejam, ocorrem com mais frequência do que imaginamos e, às vezes, passam despercebidas. Julia Shaw, uma psicóloga do University College de Londres, afirma com convicção que todos nós temos memórias falsas, mesmo aqueles que acreditam possuir a memória mais precisa do mundo.
As memórias autobiográficas, que abrigam nossas vivências repletas de detalhes sensoriais, como sensações, pensamentos, emoções e sonhos intensos, são um terreno traiçoeiro. Recordar uma experiência própria não se resume a acessar uma área isolada do cérebro, mas sim a conectar uma vasta rede de neurônios, criando uma teia complexa que engloba as diferentes sensações.
No entanto, Shaw nos adverte que as memórias não são registros precisos do passado, como frequentemente imaginamos. Estudos científicos já demonstraram que nossa capacidade de lembrar é inerentemente falha e raramente guarda relação com eventos que podem ser verificados. As recordações, conforme Jorge Luis Borges, o célebre escritor argentino, compreendeu, são realidades dinâmicas, mutantes e imprecisas.
Se somos feitos de memórias e nossas memórias são tão pouco confiáveis, surge a dúvida: somos feitos de mentiras? De certa forma, sim. No entanto, essa constatação não deveria nos preocupar. Nossa mente não existe apenas para registrar o passado de forma precisa, mas sim para navegar pelo presente e projetar o futuro.
As memórias são como bonecos de argila que nunca secam. Cada vez que as tocamos, as remodelamos, criando versões diferentes a cada nova lembrança. Mudamos partes, esquecemos algumas, emprestamos recordações de outras fontes. O intrigante é que não temos acesso à versão original, apenas à versão mais recente que construímos.
O trabalho de Julia Shaw ganhou notoriedade por seu experimento durante o doutorado, onde demonstrou como um grupo de estudantes pôde criar memórias falsas com relatos impressionantes. Sob sua orientação, os estudantes descreveram atos criminosos que nunca aconteceram, após apenas três sessões de manipulação.
Porém, a fragilidade da nossa memória e a influência que terceiros exercem sobre ela têm implicações profundas na justiça. A linguagem usada para descrever eventos pode distorcer a forma como os recordamos. Perguntas capciosas podem deturpar declarações em interrogatórios policiais e nos depoimentos de testemunhas. Este fenômeno torna o trabalho de especialistas como Julia Shaw essencial na revisão de casos judiciais.
Shaw enfatiza que compreender como nossas memórias são frágeis e suscetíveis à manipulação ajuda a evitar erros judiciais. O questionamento de memórias nos tribunais pode gerar dúvidas razoáveis e, em sistemas legais, a prova da acusação deve estar além de dúvidas razoáveis para sustentar uma condenação.
Apesar dos benefícios da ciência das memórias falsas, é importante usá-la com responsabilidade. Em casos delicados, como delitos sexuais, é necessário considerar o impacto que questionar as memórias das vítimas pode ter. Educar o público sobre como as memórias podem ser frágeis e manipuladas é fundamental.
Recomenda-se que, em situações importantes, as pessoas mantenham registros externos de suas memórias, para entender como elas podem mudar ao longo do tempo e preservá-las da melhor forma possível.