A Cracolândia: Um Retrato da Necropolítica

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No coração dessa metrópole frenética, um território é esquecido e desumanizado, tornando-se um microcosmo da necropolítica em ação. A Cracolândia, o local que muitos preferem ignorar, é muito mais do que as manchetes sensacionalistas retratam.

As narrativas difundidas pelos mais diversos meios pintam um quadro sombrio: violência, vidas destroçadas e um espaço que parece resistir à solução. E nós, cidadãos comuns, muitas vezes assistimos a essas cenas, anestesiados pela repetição e pela distância da realidade.

A Cracolândia é um lugar onde se pode ser preso por tráfico sem sequer possuir uma grama de droga. Aqui, não estamos falando de histórias, mas de vidas reais. Vidas que não encontram seu lugar nas imagens da televisão, vidas que frequentemente acabam atrás das grades por delitos que nem mesmo cometeram.

No entardecer de uma segunda-feira, uma mensagem chega: “Levantaram o cara pelo pescoço com um golpe de mata leão.” São notícias da esquina entre a Rua dos Gusmões e a Rua do Triunfo. Na foto, duas viaturas e sete guardas civis metropolitanos. O que faz um homem quando precisa enfrentar uma juíza que não enxerga tortura na imagem de uma corda? E por que esses policiais carregavam uma corda? Enquanto essa vítima é lançada no porta-malas como um saco de batatas, o que resta é a sensação de impotência, o silêncio daqueles que deveriam proteger.

A Cracolândia é um lugar onde as regras parecem diferentes, onde a violência é uma constante e a população vive em constante sobressalto. Porém, há aqueles que encontram maneiras de sobreviver e resistir a esse ambiente hostil.

Aqui, a narrativa se torna mais íntima. Eu encontro um homem cujo corpo e palavras são marcados por camadas de violência. É um corpo que carrega as cicatrizes visíveis e invisíveis da Cracolândia.

Nossa conversa é interrompida por estranhos que tentam nos comprar, vender de tudo, ou a si mesmos. Navegamos por esse mar de acontecimentos, encontrando um pequeno vínculo de afeto e cuidado em meio ao caos. Mas, de repente, o fluxo estoura, e a realidade se impõe.

“Vou embora, quer ir comigo? Te deixo no meu caminho”, ele oferece. Subimos em seu carro e ele pede dinheiro, embora não tenha um celular. A semana toda, o vejo nervoso. Tentamos nos encontrar, mas parece que nossos caminhos se cruzam e se afastam ao sabor da Cracolândia.

Na perspectiva despersonalizada das imagens panorâmicas, nos acostumamos a aceitar o inaceitável. A violência absurda, aterrorizante e constante que permeia esses territórios de vulnerabilidade torna-se parte do cenário diário. A morte e o desaparecimento são o pano de fundo de nossas vidas, uma realidade que nos leva a procurar refúgio no futebol, no cinema e em outros territórios que nos oferecem uma fuga temporária desse horror.

Mas, precisamos questionar: por que as violações diárias de corpos e vidas na Cracolândia passam despercebidas? Estariam seus habitantes mais mortos do que vivos? A Cracolândia, há décadas, permanece como um problema sem solução. Mas será que realmente não há solução, ou isso é simplesmente um reflexo da necropolítica em ação?

Nossa sociedade muitas vezes legitima a violência em nome da “ordem” e da “segurança”, enquanto, na verdade, é o poder que está em jogo. Construímos narrativas que desumanizam aqueles que vivem na Cracolândia, comparando-os a zumbis. E assim, gerações inteiras são ensinadas a aceitar a morte como algo corriqueiro, como algo inerente àqueles que habitam esses territórios marginalizados.

A operação “Caronte”, realizada para combater o tráfico de drogas na Cracolândia, pode servir como metáfora para a situação. Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro de Hades, responsável por conduzir as almas dos mortos para o submundo. Será que os habitantes da Cracolândia são vistos como almas já perdidas, mais mortos do que vivos?

Vivemos em uma sociedade que valoriza a vida de forma seletiva. As vidas dos usuários de drogas, em particular, os usuários de crack, são desvalorizadas. É hora de questionar essa lógica e buscar uma solução mais humanitária.

A Cracolândia é um lembrete de que a morte não deve ser aceita como parte inevitável de nossa sociedade. É um chamado para repensar nossas políticas e nossas atitudes em relação àqueles que são marginalizados e desfavorecidos.

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