Na década de 1980, enquanto ainda era um jovem editor-assistente na respeitada revista estadunidense The Nation, eu tive o privilégio de fazer amizade com um nome que viria a moldar significativamente minha carreira: o escritor e professor de história Martin J. Sherwin. Naquela época, Sherwin já estava imerso em pesquisas para uma biografia do físico nova-iorquino J. Robert Oppenheimer, considerado o “pai da bomba atômica”. No entanto, o livro estava estagnado na etapa de pesquisa, sem progresso significativo. Sherwin constantemente acreditava que havia mais arquivos a serem investigados, mais entrevistas a serem realizadas, criando uma barreira para a concretização de sua obra.
Lembro-me de Sherwin argumentando que sempre sentia que havia “mais um arquivo a ser visitado ou mais uma entrevista a ser feita”, e esse ciclo aparentemente interminável de pesquisa o impedia de avançar na escrita do livro. O tempo passava, mas a biografia do homem que desempenhou um papel fundamental na criação da bomba atômica continuava inacabada.
Foi então que, no ano 2000, Martin J. Sherwin tomou uma decisão crucial e convidou-me para unir forças e finalmente transformar sua pesquisa em uma biografia completa. Com seu humor característico, ele brincou que, se eu não aceitasse a oferta, sua lápide poderia muito bem conter a inscrição: “Ele levou esse projeto consigo”. Aceitei o desafio, não apenas por falta de outras opções, mas também porque a história de Oppenheimer era fascinante e merecia ser contada.
Juntos, como coautores, lançamos uma biografia minuciosa e abrangente após cinco anos de trabalho árduo. “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano” logo se tornou um best-seller nos Estados Unidos e conquistou o prestigioso Prêmio Pulitzer em 2006. Mais recentemente, serviu de base para o filme “Oppenheimer”, dirigido por Christopher Nolan, que arrecadou mais de 933 milhões de dólares nas bilheteiras em 2023.
Contudo, o destino trouxe um toque agridoce a essa história de sucesso. Martin J. Sherwin não pôde testemunhar a adaptação cinematográfica de sua obra-prima, tendo falecido em outubro de 2021 aos 84 anos, vítima de um câncer no pulmão. O trabalho árduo, a pesquisa incansável e a paixão que ele dedicou a Oppenheimer não puderam ser compartilhados na emocionante jornada do filme e das discussões que ele provocou. Perder esse grande historiador e meu colaborador foi uma das poucas sombras em nossa caminhada conjunta.
Kai Bird, que também assinou outros livros notáveis sobre figuras históricas dos Estados Unidos, como John J. McCloy, os irmãos McGeorge Bundy e William Bundy, e Robert Ames, oficial da CIA, continua seu compromisso com a história e a divulgação de eventos e personalidades que moldaram o mundo em que vivemos.
Em uma entrevista exclusiva, Bird compartilhou suas perspectivas sobre o físico J. Robert Oppenheimer, o Projeto Manhattan e os complexos dilemas morais que cercam a criação da bomba atômica.
Em relação à escolha de Oppenheimer para liderar o Projeto Manhattan, Bird reconhece que foi uma escolha improvável. O físico não era um administrador, mas sim um professor de física, e embora não tenha recebido um Prêmio Nobel, sua genialidade era inquestionável. Além de sua proficiência científica, Oppenheimer era um homem multifacetado, envolvido em política, poesia e literatura, o que o tornava um comunicador eficaz em um projeto que envolvia físicos, químicos e engenheiros de diversas áreas.
Entretanto, Oppenheimer era uma figura complexa, como Bird destaca. Antes do histórico Experimento Trinity, o físico estava focado na busca de um dispositivo funcional, apesar da Alemanha ter sido derrotada e Hitler morto, o que levantou questionamentos sobre a necessidade de continuar o projeto. Após o teste da bomba atômica, Oppenheimer demonstrou preocupação com o impacto destrutivo da arma, especialmente nas vidas de civis, principalmente mulheres e crianças, que seriam as principais vítimas. No entanto, paradoxalmente, ele também instruiu os bombardeiros sobre como obter o máximo impacto ao lançar a bomba em Hiroshima.
A vida de Oppenheimer é repleta de contradições, e sua jornada após Hiroshima envolveu uma queda em uma profunda depressão, seguida por um compromisso em tentar conscientizar os políticos sobre os perigos das armas nucleares e sua regulação. Infelizmente, esses esforços acabaram por torná-lo um alvo político, e ele foi denunciado pela Comissão de Energia Atômica em 1954.
O legado de Oppenheimer é complexo, e seu papel na história é ainda objeto de debates e reflexões. A narrativa de Bird e Sherwin desafia muitas das narrativas convencionais em torno dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki. Um influente artigo de 1947 do então secretário de Guerra dos EUA, Henry Stimson, alegou que a bomba lançada em Hiroshima salvou “mais de um milhão” de vidas americanas. Entretanto, uma investigação revelou que não havia evidências científicas que sustentassem essa afirmação. Bird explica que a afirmação de Stimson era baseada em propaganda e não em fatos concretos, sublinhando a complexidade das narrativas em torno dos eventos históricos.
À medida que novas gerações se interessam pela história de Oppenheimer, seja por meio do livro ou do filme, a visão sobre essa figura histórica continua a evoluir. A história de Oppenheimer se torna cada vez mais relevante à medida que o mundo lida com as implicações das armas nucleares e os desafios da não proliferação.
Em nosso atual contexto, em 2023, enquanto o mundo se esforça para conter as tensões globais e os riscos nucleares, a história de J. Robert Oppenheimer permanece uma lembrança crucial de como as decisões individuais podem moldar o curso da história e, ao mesmo tempo, levantar questões eternas sobre a moralidade da ciência e da política.